por Marcus Vinícius Gabriel
Nunca se falou tanto como no presente. O indivíduo deste século está em processo terapêutico similar ao grito primal, do psicanalista Arthur Janov. Vejamos.
A teoria em questão fomenta que demandas psicológicas são causadas por emoções e sentimentos reprimidos. Janov (2014) afirma que essas emoções reprimidas podem ser o escopo de interferências organísmicas, incluindo ansiedade, depressão e raiva.
Vamos adiante: a expressão dessas emoções retidas no todo pessoal inclui falar, chorar, gritar ou emitir sons diversos. Ou seja, uma catarse plena, de integração grupal, como fomentava Moreno (2012), um movimento célebre de descompressão, capaz de afugentar armadilhas montadas pela própria pessoa, em si mesma.
Aonde quero chegar? Ao fato de que a teoria do grito primal, conjugada por Janov nos anos 1960, está mais evidenciada que nunca neste encaminhamento de primeiros 24 anos do século 21.
O ser atual encontra-se no “fio da navalha”, seja em que gramatura psíquica atuar, sob exposição basilar. Acrescente-se os diagnósticos do sociólogo Hartmut Rosa em um só recipiente, valendo-se das premissas:
[…] à medida que o ritmo da vida material, econômica e cultural se torna cada vez mais rápido, à medida que conquistamos a instantaneidade da troca de informações e adquirimos a possibilidade de viajar a velocidades até então inimagináveis, temos a impressão de que nada está se movendo, que estamos simplesmente caminhando em uma esteira (Rosa, 2020).
O conceito de aceleração social, trazido por Rosa, impõe ao sujeito uma metástase do desespero: o homem, em transe, berra para sobreviver. A vida rápida é o próprio déficit de atenção, personificado no humano. O homem, acelerado, fala, grita, berra, sujeita-se à existência sonora pelo viés do ruído.
Assim, remeto-me ao “papa” da crítica sobre a representatividade humana, William Shakespeare, de onde ressoa em uma de suas peças a expressão “o mundo é um palco, homens e mulheres são seus jogadores” (Neves et al., 2016). O palco é todo e qualquer púlpito para o grito.
O Brasil dispõe atualmente da maior taxa de acometidos por transtornos depressivos da América Latina. É, claro, o terceiro pior índice de saúde mental do mundo (Martins, 2022).
Nesse ínterim, concentramos no cenário atual uma hiperdosagem de perturbações relacionais, familiares e sociais sem precedentes: uma batida de trânsito pode desencadear uma parafernália abismal. Um esbarrão na rua, uma divergência de opinião, um posicionamento político inflamável, um equivocozinho inocente, uma ligeira alteração de comportamento, um olhar entortado, um desejo não realizado, uma interferência alheia, podem instituir o caos catedraticamente, tornando o sujeito o caldeirão, o fogo e a própria sopa fervendo em si.
No entanto, a terapia do grito de Janov é contestada por psicólogos, como atesta Sascha Frühholz, da Universidade de Zurique: “Nenhuma escola séria de psicoterapia usa nenhum elemento da terapia do grito primal hoje”, em entrevista ao site do The Guardian (2023).
Se não há evidências científicas, a modernidade ecoa rugidos por atenção, socorro, visibilidade, vazios e temores na alma. Não dialoga mais, nem com si mesmo, nem com ninguém. Entretanto, ninguém ouve o grito.
Roland Orzabal e Curt Smith, os geniais Tears for Fears, entoaram “Shout” em 1984, canção que brada: “Grite, grite! Ponha tudo para fora!”, em referência à terapia de Janov, além de expressar forte apelo à libertação das opressões sociais e emocionais, incentivando uma atitude de rebelião contra normas e expectativas. Cantamos (e dançamos) “Shout” há 40 anos!
O grito da atualidade é a rendição à perdição. Remeto-me a Bauman (2014), pelo qual: “A versão atualizada do Cogito de Descartes é ‘Eu sou visto, logo existo’ – e que, quanto mais pessoas me veem, mais eu sou […]”.
O que eu sou?
O grito lhe dirá.
Marcus Vinícius Gabril
Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário do Norte de São Paulo (Unorte). Mestre em Psicologia e Saúde (Famerp), especialista em terapia sexual, psicologia clínica fenomenológica-existencial, psicologia de emergências e desastres, dançaterapia e mindset nos processos de intervenção. É docente universitário na Unorte.
Referências
Bauman, Z. (2014). Cegueira moral. A perda da sensibilidade na modernidade líquida. Editora Zahar.
Janov, A. (2014). El grito primal. Letra de Nube.
Little evidence screaming helps mental health, say psychologists. The Guardian, 2023. Disponível em: https://www.theguardian.com/science/2022/sep/23/little-evidence-screaming-helps-mental-health-say-psychologists
Martins, F. (2022). Na América Latina, Brasil é o país com maior prevalência de depressão. Ministério da Saúde. https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/setembro/na-america-latina-brasil-e-o-pais-com-maior-prevalencia-de-depressao
Moreno, J. L. (2012). O teatro da espontaneidade. Editora Agora.
Neves, J. R. de C., Montenegro, F., Franco, G., Leão, L. Falcão, J., Bologna, J. E., & Silva, T. (2016). O mundo é um palco: Shakespeare 400 anos: um olhar brasileiro. Edições de Janeiro.
Orzabal, R., & Stanley, I. (1984). Shout [Canção]. In Songs from the Big Chair. Phonogram/Mercury.
Rosa, H. (2020). Aceleração: uma transformação das estruturas temporais na modernidade. Editora Unesp.