1. Introdução
O psicodiagnóstico, entendido como um processo de investigação dos processos mentais e psicológicos dos indivíduos, desempenha um papel crucial na prática da psicologia clínica e da saúde mental. De acordo com Cunha (2007), esse processo é científico e temporário, utilizando-se de testes e técnicas psicológicas para esclarecer questões relacionadas às queixas apresentadas pelos avaliados.
Contudo, sua aplicação em contextos multiculturais, como o de Foz do Iguaçu – uma região de tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina –, demanda considerações específicas em virtude das complexidades culturais, sociais e econômicas locais.
Com mais de 14 mil imigrantes de 95 nacionalidades diferentes (IBGE, 2022), Foz do Iguaçu representa um cenário multicultural que desafia a prática convencional do psicodiagnóstico. A necessidade de adaptação de instrumentos e técnicas para atender adequadamente populações tão diversas é amplamente discutida na literatura. Hambleton (2005) destaca que a eficácia do psicodiagnóstico em contextos multiculturais depende não apenas da tradução dos instrumentos, mas também de sua adaptação cultural e linguística, visando garantir validade e precisão nos resultados.
2. Contexto e desafios
A prática de avaliação psicológica em regiões de fronteira, como Foz do Iguaçu, revelou desafios particulares relacionados à complexa interação de variáveis culturais, sociais e econômicas que influenciam tanto o avaliador quanto os avaliados.
2.1. Diversidade cultural e identidade psicológica
As populações que vivem em regiões fronteiriças apresentam configurações culturais únicas, fruto de suas origens múltiplas e de dinâmicas migratórias. Essa diversidade afeta não apenas a interpretação dos instrumentos psicológicos, mas também a forma como os sujeitos percebem e processam o próprio processo avaliativo.
2.2. Dificuldades de acesso à saúde mental
Em regiões como Foz do Iguaçu, a desigualdade no acesso aos serviços de saúde mental e a carência de recursos especializados são fatores que impactam diretamente a avaliação psicológica. Além disso, a percepção de estigma em relação à saúde mental varia significativamente entre os grupos culturais presentes.
2.3. Especificidades socioeconômicas e vulnerabilidade social
Condições de vulnerabilidade econômica, associadas à precarização do trabalho e à instabilidade de populações migrantes, influenciam os resultados do psicodiagnóstico. Esses fatores devem ser analisados com cautela para evitar interpretações enviesadas ou descontextualizadas.
3. Reflexões sobre a prática diagnóstica
A diversidade cultural que caracteriza regiões de fronteira, como Foz do Iguaçu, apresenta desafios específicos para o psicodiagnóstico. Nesse contexto, a validade ecológica dos instrumentos de avaliação surge como um aspecto central a ser considerado. Schmuckler (2001) define validade ecológica como a capacidade dos instrumentos de refletirem, de maneira fiel, os fenômenos psicológicos em contextos reais. Assim, em áreas marcadas por dinâmicas multiculturais, é essencial que os instrumentos sejam sensíveis às especificidades locais para evitar interpretações distorcidas ou imprecisas.
A adaptação de instrumentos psicológicos vai além da tradução literal. Como apontam Borsa, Damásio e Bandeira (2012), esse processo deve garantir a equivalência semântica e cultural dos testes, assegurando que os construtos avaliados sejam representativos e relevantes para a realidade da população atendida.
Em Foz do Iguaçu, por exemplo, a diversidade linguística e os valores culturais distintos exigem que as adaptações considerem fatores como idioma, práticas sociais e concepções de saúde mental próprias de cada grupo. Sem essas adequações, há risco de que os testes falhem em captar nuances importantes, comprometendo tanto a precisão diagnóstica quanto a eficácia das intervenções.
Outro elemento crucial para o psicodiagnóstico em contextos multiculturais é a invariância fatorial, que assegura que os instrumentos psicológicos mensurem os mesmos construtos de maneira consistente em diferentes grupos culturais (Damásio, 2013).
A ausência dessa consistência pode resultar em diagnósticos enviesados e limitados, especialmente em regiões de fronteira, onde as influências culturais são complexas e diversificadas. Portanto, avaliar se os instrumentos disponíveis atendem a essas condições é um passo indispensável para garantir a equidade no processo avaliativo.
É fundamental que o psicodiagnóstico seja conduzido com uma abordagem que integre os aspectos culturais, sociais e econômicos da população atendida. Essa sensibilidade cultural não apenas aprimora a compreensão do avaliador sobre o sujeito, mas também contribui para estabelecer uma relação de confiança e respeito durante o processo diagnóstico. Conforme discutido por Hambleton (2005), a adaptação eficaz de instrumentos é parte de um compromisso ético dos profissionais de saúde mental em garantir que o cuidado oferecido seja apropriado e eficaz para populações diversas.
4. Considerações finais
Este texto evidencia que o psicodiagnóstico em regiões de fronteira exige estratégias que ultrapassam os métodos tradicionais. O cenário multicultural de Foz do Iguaçu demanda práticas diagnósticas que sejam culturalmente sensíveis e tecnicamente precisas, contribuindo para a promoção de uma saúde mental inclusiva e ética.
A análise dos desafios encontrados nessa região sugere que a prática psicológica deve ser constantemente aprimorada para incorporar uma abordagem interdisciplinar, considerando as interações entre fatores culturais, sociais e econômicos. Dessa forma, é possível avançar na construção de instrumentos e métodos que respeitem a diversidade e promovam a equidade no cuidado em saúde mental.
por Jessica Gaspar da Costa
Jessica Gaspar da Costa
Graduada em Psicologia (2019), é especialista em Neuropsicologia e em Avaliação Psicológica. Pós-graduada em Africanidades e Cultura Afro-Brasileira e cursando a segunda licenciatura em Pedagogia. Atua principalmente nos temas de Avaliação Psicológica, Testes Psicométricos, Neuropsicologia, Supervisão Profissional e Treinamentos, além de Psicologia Clínica Antirracista com ênfase na abordagem Humanista-Existencial-Fenomenológica.
Já atuou como Psicóloga Responsável Técnica na PSI TESTES PSICOLÓGICOS E PEDAGÓGICOS. Atualmente é psicóloga clínica e docente nos cursos de Psicologia e Pedagogia, além de Responsável Técnica na clínica-escola da AIUA-Uniamérica. Também leciona em cursos de Pós-graduação na instituição Faculdade Focus.
Referências
Borsa, J. C., Damásio, B. F., & Bandeira, D. R. (2012). Adaptação e validação de instrumentos psicológicos entre culturas: algumas considerações. Paidéia, 22( 53), 423-432. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2012000300014
Borsa, J. C., Lins, M. R. C., & Rosa, H. L. R. S. (Org.). (2022). Dicionário de avaliação psicológica. Vetor Editora.
Conselho Federal De Psicologia [CFP]. (2013). Cartilha de avaliação psicológica. CFP. https://satepsi.cfp.org.br/docs/cartilha.pdf
Cunha, J. A. (2007). Psicodiagnóstico. (5. ed. rev. e ampl.). Artmed.
Damásio, B. F. (2013). Contribuições da análise fatorial confirmatória multigrupo (AFCMG) na avaliação de invariância de instrumentos psicométricos. Psico-USF, 18(2), 211-220.
Equipe Editorial da Psico-Smart. (2024). De que maneira a diversidade cultural influencia a criação e a validação de testes psicométricos? Psico-smart. https://psico-smart.com/pt/blogs/blog-de-que-maneira-a-diversidade- cultural-influencia-a-criacao-e-a-validacao-de-testes-psicometricos-134050
Hambleton, R. K. (2005). Issues, designs, and technical guidelines for adapting tests into multiple languages and cultures. In Hambleton, R. K., Merenda, P. F., & Spielberger, C. D. (Eds.). Adapting educational and psychological tests for cross- cultural assessment. Lawrence Erlbaum, 3-38.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. (2022). Foz do
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Mendonça, O., Prezzoto, P., & Burt, L. (2023). O 1.º Relatório Yglota de Nacionalidades e Etnias da Região Trinacional do Iguaçu. Instituto Yglota. https://www.codefoz.org.br/wp- content/uploads/2024/07/Relatório-de-Nacionalidades-e-Etnias-da-Região- Trinacional.pdf
Schmuckler, M. A. (2001). What is ecological validity? A dimensional analysis. Infant Behavior and Development, 24(4), 469-472.