Por Matheus Svóboda Caruzo e Emmy Uehara Pires
Panorama sobre a avaliação neuropsicológica infantil
A Neuropsicologia é uma ciência interdisciplinar que estuda as relações entre a cognição, o comportamento humano e a atividade do sistema nervoso em condições preservadas ou alteradas (Lezak, Howieson, & Loring, 2004). Dentre os principais campos de atuação, Haase et al. (2012) ressaltam o ensino e pesquisa, a prevenção, a avaliação e o diagnóstico, além da reabilitação neuropsicológica, sejam nos transtornos do neurodesenvolvimento como nos adquiridos ao longo do ciclo vital
No que diz respeito à avaliação neuropsicológica, é o método utilizado no auxílio do diagnóstico diferencial. Diferente da avaliação psicológica, a avaliação neuropsicológica analisa e interpreta os dados à luz do funcionamento cerebral.
Deste modo, o processo avaliativo pode contemplar a investigação das funções cognitivas, linguísticas, socioemocionais, motoras, funcionais e adaptativas (Lezak et al., 2004). Por meio deste processo, por exemplo, o neuropsicólogo poderá identificar as habilidades preservadas e a amplitude do déficit, sendo possível planejar um programa interventivo individualizado (Tirapu-Ustárroz, 2011).
A avaliação neuropsicológica de crianças é um exame frequentemente requisitado por distintas áreas profissionais. Apresenta similitudes com a avaliação de adultos por ser um processo complexo e com etapas previamente estabelecidas, circunscrito com base em determinações normativas (CFP, 2003).
Entretanto, a avaliação infantil exige amplo conhecimento sobre o desenvolvimento típico e atípico, marcos maturacionais e as principais patologias acometidas nessa faixa etária, de maneira que o profissional possa contextualizar o desempenho do avaliando ao seu grau de evolução nas etapas do desenvolvimento.
A ENTREVISTA CLÍNICA DE ANAMNESE
Após o contato inicial com os responsáveis, a entrevista clínica de anamnese possibilita um levantamento de informações detalhadas sobre a história de vida do cliente. Sendo uma etapa de base, é imprescindível para a busca de hipóteses e auxilia a escolha das técnicas e instrumentos que serão utilizados. Embora não haja um roteiro preestabelecido, a investigação de certas dimensões é essencial durante a anamnese, tais como aspectos do desenvolvimento, histórico clínico, características marcantes da personalidade e vida escolar. Ainda, deve-se realizar um levantamento de sintomas cognitivos, emocionais e comportamentais, de modo a orientar o planejamento da avaliação com base em uma compreensão extensiva do caso.
Ao iniciar as sessões com a criança ou o adolescente, é preciso estar atento às especificidades de cada faixa etária. É indicado alertar aos pais previamente quanto a aspectos fisiológicos que podem influenciar a avaliação (sono, cansaço, fome), assim como é necessário explicar sobre a avaliação para o próprio avaliando, sobretudo se adolescente, fomentando seu engajamento, motivação e empenho nas atividades. Já o profissional que atende uma criança pequena pode precisar de algumas pausas ao longo das sessões decorrentes da timidez, falta de entrosamento ou ansiedade de separação, o que ressalta uma maior necessidade de adaptação e flexibilização na avaliação de fases iniciais do desenvolvimento (Aylward, 2013).
O primeiro encontro com o cliente é, via de regra, uma sessão introdutória denominada sessão livre. É um momento oportuno para estabelecer vínculos com o avaliando e inseri-lo no processo de avaliação. Em geral, não há aplicação de instrumentos formais, sendo a sessão composta por atividades lúdicas que possibilitarão a observação inicial do comportamento da criança. Ao brincar, a criança se expressa de maneira concorrente ao seu modo de expressão diário, fator que contribui para a validade ecológica da avaliação ao aproximar os resultados colhidos no ambiente clínico daqueles performados cotidianamente.
Avaliação neuropsicológica infantil: para além da anamnese.
Para além da anamnese e da observação, a avaliação neuropsicológica utiliza testes e instrumentos padronizados e favoráveis pelo SATEPSI, bem como paradigmas neuropsicológicos clássicos. A aplicação de instrumentos isolados tende a apresentar baixa relevância clínica, indicando-se que estes sejam utilizados de modo complementar para melhor compreensão da função avaliada.
É importante ressaltar que a qualidade das informações colhidas durante a avaliação dependerá da escolha de instrumentos adequados e recursos pertinentes ao caso, assim como de uma investigação exaustiva durante a anamnese e da constante correlação dos resultados clínicos com o desempenho cotidiano do avaliando.
Uma das etapas mais desafiadoras para o psicólogo é a análise e a integração das informações. Tal interpretação deve privilegiar um olhar contextualizado, correlacionando os resultados quantitativos e qualitativos com as hipóteses iniciais e os objetivos da avaliação. Psicólogos com pouca experiência clínica podem encontrar dificuldades na análise do caso e na elaboração do Laudo Neuropsicológico, porém, o treinamento e supervisão podem proporcionar uma maior segurança (Uehara, 2017).
Na última etapa do processo os resultados são apresentados e discutidos com os responsáveis em uma entrevista devolutiva, que pode ser estendida à escola. Esse é o momento de fechamento da avaliação e abertura de orientações e encaminhamentos. É crucial promover um diálogo direto, priorizando uma comunicação adequada, sem excesso de jargões e apresentando os principais achados com base em exemplos concretos.
Por ser um momento delicado, é importante ressaltar que a avaliação neuropsicológica é um processo dinâmico e que seus resultados têm caráter momentâneo e situacional. O produto final deve fornecer um perfil neuropsicológico do cliente que – associado à avaliação de aspectos neurológicos, psicológicos e sociais – permite a orientação para o melhor aproveitamento de suas potencialidades.
Referências
Aylward, G. (2013). Infant and early childhood assessment. In M. G. Tramontana, & S. R. Hooper (Eds.), Assessment issues in child neuropsychology (pp. 225-246). Nova York, NY: Springer Science/Business Media.
Conselho Federal de Psicologia [CFP]. (2003). Resolução n. 002/2003. Recuperado de http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2003/03/resolucao2003_02_Anexo.pdf.
Haase, V. G., Salles, J. F., Miranda, M. C., Malloy-Diniz, L., Abreu, N., Argollo, N. … Bueno, O. F. A. (2012). Neuropsicologia como ciência interdisciplinar: consenso da comunidade brasileira de pesquisadores/clínicos em neuropsicologia. Revista Neuropsicologia Latinoamericana, 4(4), 1-8. doi: 10.5579/rnl.2012.125.
Lezak, M. D., Howieson, D. B., & Loring, D.W. (2004). Neuropsychological Assessment (4th ed.). New York, NY: Oxford University Press.
Tirapu-Ustárroz, J. (2011). Neuropsicología: neurociência y las ciencias “Psi”. Cuadernos de Neuropsicología, 5(1), 11-24. Recuperado de http://www.cnps.cl/index.php/cnps/article/viewFile/113/100.
Uehara, E. (2017). Avaliação de crianças e adolescentes: aspectos cognitivos. In M. R. C. Lins, & J. C. Borsa (Orgs.), Avaliação psicológica: aspectos teóricos e práticos (pp. 213-235). Petrópolis, RJ: Editora Vozes Limitada.
SOBRE OS AUTORES
Matheus Svóboda Caruzo
Psicólogo (UFRRJ). Mestrando em psicologia (PPGPSI/UFRRJ). Pesquisador do Núcleo de Ações e Reflexões em Neuropsicologia do Desenvolvimento (NARN/UFRRJ). Atua como psicólogo clínica na área de Avaliação e Reabilitação Neuropsicológica.
Emmy Uehara Pires
Psicóloga (UFRJ). Mestre e doutora em psicologia clínica (PUC-Rio). Professora-adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DEPSI/PPGPSI/UFRRJ). Coord. do Núcleo de Ações e Reflexões em Neuropsicologia do Desenvolvimento (NARN/UFRRJ) e ST3M²-C/UFRRJ – Estudos Transdisciplinares sobre Empoderamento de Meninas e Mulheres na Ciência.
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