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Em tempos de Pandemia, peço licença para falar de Saúde

por Jaqueline Giordano, Mestre em Administração, Comunicação e Educação.

Mulher com máscara cirúrgica descartável, rosto desfocado, com os braços estendidos, mãos fechadas e os polegares apontando para cima.

A frase acima provoca. Afinal, não se fala disso o tempo todo? A questão é que não. Se observarmos atentamente os noticiários diários, majoritariamente o enfoque está em como lidar com a doença Covid: Quem nos contagiou? Qual o agente causador? Quais medicamentos e vacinas indicam?

Mal comparando, é como se nos concentrássemos em “como remover a sujeira” e, de forma intencional ou não, desconsideramos a outra face desta moeda: “como se promove a limpeza?”. Ou seja, necessário se faz, para a ter a visão completa, acrescentar perguntas tais como “Por que justamente essa pessoa contraiu a doença?”, “Por que e como outras pessoas ao redor continuam sadias?”, “O que as protege?”, “O que podemos fazer antecipadamente para mudar nossos hábitos de vida e assim criar mecanismos de resistência a este outro vírus ou alguma das suas variantes (algo que parece ser inevitável ao longo do tempo)?

Mas, ao que tudo indica, parece que caminhamos na contramão, nesta jornada de mais de um ano de pandemia. Aos poucos, fomos entrando em um mundo que mais parece da ficção científica, em que as pessoas, isoladas e com medo, estão se habituando a uma “vida artificial”, ligadas à televisão e à internet.

E seguimos ouvindo, e de tanto ouvir, até mesmo nos anestesiamos ante os importantes apelos para nos precavermos, com bons hábitos de usar máscaras, lavar as mãos, manter distanciamento, usar álcool em gel, juntamente com os tristes e alarmantes anúncios diários de números de óbitos, de sequelas, de miséria, de abandonos. E, nesta paralisia, como cidadãos, muitos se posicionaram como meros consumidores-espectadores, vendo a realidade transformada em puro espetáculo, em que, perigosamente, é possível inclusive que se banalize o que é complexo.

Tudo virando “virtual”, do trabalho aos relacionamentos, passando por atividades físicas, estudos, ações de autodesenvolvimento e mesmo consultas médicas e as mais diversas técnicas terapêuticas “à distância”.

Atividades importantes, porém, sem consciência e consistência, podem ser facilmente convertidas em casca sem conteúdo, em uma espiral descendente em profundo autoengano, em que aparentemente paramos nossas rotinas para priorizarmos e cuidarmos da saúde. Será mesmo? Ou seguimos o curso natural da história ao nos debruçarmos apenas sobre a patologia e buscarmos soluções prontas, rápidas e encapsuladas?

Em contraposição a esse enfoque hegemônico na Patogênese , voltada para a investigação das doenças, temos o paradigma da Salutogênese , proposto pelo médico e sociólogo norte-americano Aaron Antonovsky, que proclama um novo olhar, não mais em direção única da doença e de seus fatores externos, mas um olhar para a saúde, considerando sua origem e promoção.

Um conceito que propõe que se identifiquem os fatores que estão na origem da saúde humana – individual e coletivamente – e assim se contrapõe e reposiciona cada indivíduo e sociedade numa busca contínua por equilíbrio dinâmico, com base em uma estrutura cognitivo-emocional-social, que designa por “the sense of coherence” (o sentido de coerência). Senso de coerência como estado de harmonia e bem-estar com o meio social, familiar e consigo mesmo (ANTONOVSKY, 1979).

Neste sentido, vale destacar que a própria economia, fator impulsionador de nossa sociedade capitalista, suscita a necessidade nessa nova direção. A cada dia, os custos das doenças estão mais insustentáveis, tanto para a pessoa em particular quanto para os serviços públicos.

O novo caminho de pesquisa sobre Salutogênese parece ser mais condizente com a demanda de nossa época, por ser mais abrangente e, de certa forma, promover uma coprodução do próprio sujeito, ou seja, sua participação consciente no processo de resistência, ao se educar para adquirir e manter bons hábitos de saúde.

E o que bons hábitos, bons pensamentos e boas ações têm a ver com o aumento da resistência? Muito pouco se fala disso. Muito pouco é dito sobre os desdobramentos da saúde, não como extremo oposto da doença, mas circunstâncias qualitativas e gradativas da dinâmica de resistência versus não resistência, atuam no indivíduo em algum momento da sua biografia (STEINER, 1925).

Assim pensando, poderíamos nos debruçar em entender como esta crise pode ser essencial para a construção coletiva de um caminho de equilíbrio dinâmico na busca pela saúde, ao invés da ilusória busca pela ausência de estresse, do desejo ingênuo de “voltar à normalidade anterior”.

Vale salientar que os dois paradigmas – Patogênese e Salutogênese – entretanto, não sendo excludentes, mas complementares, deveriam ser sempre assim apresentados – como os dois lados da moeda. Sabemos que alguns indivíduos sobreviventes e resistentes à Covid têm uma história de vida que parece indicar que tais recursos foram despertados ou já se encontravam disponíveis em sua forma de lidar com a vida.

Será que a mídia não poderia também apresentar esses casos como uma forma pedagógica, ao invés de apenas apresentar os outros indivíduos cujos recursos salutogênicos não estavam disponíveis e, assim, não resistiram?

Não se trata de menosprezar os alertas, mas se continuarmos a enfatizar só um aspecto, perderemos a grande oportunidade de sair fortalecidos coletivamente desta triste – porém riquíssima – experiência. E, ao que tudo indica, iremos conviver por longo tempo com este e outros vírus.

Parece que temos de mudar algo em nossas ações diárias e até mesmo em nosso pensar, sentir e querer, para termos um agir mais coerente e responsável, mais completo e integrativo.

Assim, é urgente pensar a assistência pública de modo interdisciplinar, e ir tocando em questões fundamentais para a saúde em medicina, odontologia, psicoterapia e terapias diversas, educação, arte, religião, antropologia e filosofia.

Por que não? Qual o interesse em manter o foco apenas na Patogenia? Suspeito que possa haver interesses outros por trás desta visão incompleta sobre saúde. E a dinâmica é sutil, afinal, todo ser humano tem, por sua própria natureza, necessidades cuja satisfação depende do seu bem-estar.

Todos nós precisamos de alimento, vestuário, abrigo, remédio, etc. Porém, tomemos cuidado, pois na condição de portadores de necessidades que precisam ser satisfeitas nós podemos ser vistos como meros “consumidores”, “clientes”, “carentes”, etc. E isso nos esvazia de Saúde, num ciclo vicioso. Pensemos então quais são as reais necessidades que temos para uma boa “qualidade de vida”: se for nada mais que a posse de uma série de cacarecos para uso e desfrute, então vamos bem.

No entanto, nessas condições, é claro que a mediação entre a saúde e a vida não é outra coisa que a apropriação utilitária . Como romper com isso então? Não há um caminho simples, mas começar a discutir em profundidade essa questão e trazer a Salutogênese como um conhecimento a ser adquirido por todos é um primeiro e importante passo.

Uma relevante consideração nesse caminho é que sabemos que o indivíduo resistente pode sê-lo de uma forma totalmente espontânea, voluntária. Assim como, por outro lado, um indivíduo profundamente comprometido com autoaprimoramento pode encontrar-se fragilizado diante de um mundo ameaçado e pode adoecer.

A isso chamamos pelo termo Crise, que é, reconhecidamente, um dos fatores estressores possíveis a qualquer indivíduo. Por outro lado, o sujeito pode sair fortalecido, porque com a crise se adquire coragem, esperança e senso de liberdade.

Apoiando-me em Viktor Frankl, proponho pensar que, se a experiência da crise é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido, devemos tratar de saber como a experiência da Pandemia atribuirá sentido de existência e de finitude, e de como este saber nos torna mais conscientes e, logo, mais saudáveis.

O saber da experiência é um saber poderoso e transformador. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas ao contrário, tem sentido no modo como configura uma personalidade, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma singular de estar no mundo.

E aqui cabe destacar que a Logoterapia , em sua missão de contribuir para a qualidade da vida humana, está disponível e pode nos ajudar, de forma singular, a adentrar no mundo pós-pandemia, trazendo sólidos nutrientes para a saúde individual e coletiva, à medida que, além do cuidar, permite o cultivo de reflexões e novas práticas para nossos valores de vida diante das tribulações da existência.

Viktor Frankl foi amadurecendo sua visão ao longo de sua própria biografia, descobrindo e ensinando que sobreviver, em meio a crises, é uma arte. Arte que em muito significa adquirir a capacidade de suportar sofrimento, uma vez que sofrer faz parte de ser humano.

Em sua humanidade, a pessoa pode de alguma forma “situar-se sempre acima de qualquer situação”, transmutando a experiência da crise em uma “liberdade de algo” e “liberdade para algo”, em busca de um sentido na vida e, ao final de sua biografia, compreender então o seu sentido de vida. Aprendeu e nos ensinou Frankl sobre o “suportar”, viver com propriedade, fomentar a resiliência – com base em sua própria experiência de sofrimento extremo como prisioneiro de campos de extermínio nazistas.

Ali, comprovou sua cosmovisão prévia de que ter um sentido para a vida é o que mais fortalece, no sentido de suportar e superar as adversidades.

Afirma que a possibilidade de encontrar um sentido é única e original, apesar das mudanças sociais que possam ocorrer, pois, para Frankl, até mesmo quando somos acometidos pelo destino com alguma doença ou limitação, ainda assim é possível encontrar um sentido. E, com base nessa possibilidade de transfigurar o sofrimento pessoal em uma realização humana, a vida pode ser vista como potencialmente plena de sentido até o fim (FRANKL, 1989).

E, por falar em sentido, vale o alerta: o sentido da vida precisa ser descoberto pela pessoa – e não criado –, diante das circunstâncias que a vida lhe apresenta, por mais trágicas que sejam.

A pessoa pode se posicionar e dar respostas às perguntas que a vida faz, pois cada momento traz uma pergunta, representando um desafio e uma exigência – “a vida desafia a pessoa a responsabilizar-se, comprometer-se consigo e com uma ou mais pessoas, atuando no mundo de forma singular”. Poder posicionar-se diante da situação dolorosa, distanciando-se dela para se fortalecer, respirar, escolher um caminho e prosseguir. (FRANKL, 2008).

Finalizo depositando uma última pergunta, que me vem como importante hipótese: “Podemos viver esta Crise positivamente e simultaneamente desenvolvermos recursos de resistência, bem-estar e qualidade de vida?”. Tendo a acreditar que sim, que é um ideal possível. Em tese, todo indivíduo poderia ser ensinado a mobilizar mais intensamente recursos de resistência, o que implicaria um aprendizado referente à qualidade de vida, mais do que à quantidade de vida.

Esse aprendizado dos recursos de resistência tem relação tanto com um possível projeto de autocultivo de significados como coletivamente com programas sociais de saúde pública, de melhoria de condições de vida e de higiene, de educação e de relação saudável com o ambiente . No caminho desse ideal possível, comecemos pelo objetivo de chamar atenção para as fontes de saúde e de cura desta fase pandêmica e para como isso pode ser feito mediante um aprendizado contínuo numa educação para a saúde, configurando um trabalho que acrescente tanto ao desenvolvimento individual quanto social.

 

Jaqueline Giordano

Mestre em Administração, Comunicação e Educação, com formação complementar em Logoterapia, Psicanálise Integrativa, Orientação Vocacional, Coaching e Terapia Artística com base antroposófica. Pesquisadora do grupo de pesquisa “O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.

 

Referências

ANTONOVSKY, Aaron. Health, stress and coping. San Francisco: Jossey-Bass, 1979.
FRANKL, Viktor. E. Psicoterapia e sentido da vida: fundamentos da Logoterapia e análise existencial. São Paulo: Quadrante, 1989.
FRANKL, Viktor. E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes, 2008.
MARASCA, Elaine. Saúde se aprende. Educação é que cura. E. Antroposófic a, 2009.
MORAES, Wesley A. Auto Cultivo – uma abordagem interdisciplinar. Revista Antroposófica, São Paulo, 2000.
STEINER, Rudolf. Curso de Pedagogia Curativa (Educação Terapêutica). Ed. FETTS , 1925.

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