por Vinícius Figueiredo de Oliveira
Personalidade se trata de um conjunto de padrões de comportamentos e pensamentos que são relativamente estáveis ao longo do tempo e em diferentes situações, sendo que tais padrões dizem respeito às diferenças individuais. Não há um consenso a respeito do modelo explicativo para a personalidade, contudo, uma proposta influente tem sido a dos Cinco Grande Fatores de Personalidade, que abrangem muitos aspectos desse construto.
Tal modelo possui diversas vantagens para pensarmos em sua aplicabilidade clínica e neuropsicológica: ele possui um foco psicométrico, ou seja, é passível de mensuração; existem diversas evidências que o suportam, dentre elas as evidências transculturais; estudos de personalidade encontram herdabilidade considerável dos traços; já foi replicado em diversos contextos; possui validade ecológica, sobretudo aplicabilidade para a saúde mental e compreensão do comportamento. Neste ponto, é importante definir o que caracteriza cada um dos Cinco Grandes Fatores de Personalidade:
- Abertura a experiências: Relacionado à criatividade e ao interesse por novas ideias, atividades e experiências.
- Conscienciosidade: Relacionado à organização, disciplina, e comportamento responsável.
- Extroversão: Relacionado à busca de excitação e interação com outras pessoas.
- Amabilidade: Relacionado ao interesse social, à cooperação, e relação harmoniosa com outras pessoas.
- Neuroticismo: Relacionado à instabilidade emocional e vulnerabilidade à adversidade.
Apesar do que pode parecer à primeira vista, ao investigar os fatores de personalidade, a área das diferenças individuais não determina qual fator está presente ou ausente em cada indivíduo. Na verdade, todo ser humano apresenta os 5 fatores supracitados, porém, alguns indivíduos os apresentam em maior e outros em menor grau.
De fato, quando analisamos a manifestação dos traços no nível populacional, os achados apontam que muitos indivíduos possuem um traço em nível médio, enquanto poucos o manifestam nos extremos inferiores ou superiores, de tal forma que a distribuição de cada um dos traços na população gera um padrão de U invertido, como a imagem abaixo.
Na prática, isso quer dizer, por exemplo, que, em uma população, tende a haver poucos indivíduos com baixa extroversão, sendo que o número cresce até a manifestação média desse fator, no entanto, decresce quando verificamos a quantidade de indivíduos muito extrovertidos.
O mesmo padrão se repete nos demais fatores. Ressalta-se, contudo, para evitar confusões, que os fatores podem variar de maneira independente em um mesmo indivíduo, o que implica que uma mesma pessoa pode apresentar, por exemplo, abertura a experiências alta, amabilidade média, extroversão baixa, conscienciosidade média baixa, e neuroticismo médio.
Os fatores de personalidade, como dito anteriormente, são grupos de padrões de pensamentos e comportamentos, mas eles podem ser divididos em partes ainda menores, conhecidas como facetas. As facetas envolvem, também, agrupamentos de padrões de comportamentos e pensamentos, mas de forma menos abrangente. Assim como os grandes fatores, as facetas também se apresentam de maneira dimensional na população.
A partir do exposto acima, é possível notar que, na população, há uma variação na manifestação dos traços, sendo que indivíduos diferentes os manifestam em intensidades distintas. Uma pergunta que surge, portanto, é “De onde vem a variação?”. E a resposta para essa questão envolve aspectos que são contemplados na explicação da manifestação de qualquer fenômeno psicológico complexo: nasce de influências genéticas e ambientais.
Desde o estudo clássico de Loehlin e Nichols de 1976 até metanálises mais recentes, fica evidente que causas genéticas contribuem de maneira significativa e expressiva para a manifestação dos traços de personalidade, sendo que a herdabilidade dos grandes fatores costuma ser estimada entre 30% e 50%.
Mas da mesma forma que aspectos genéticos são relevantes para a formação da personalidade, as causas ambientais como questões culturais, familiares e convivência com pares são igualmente importantes. Dessa maneira, as diferentes variantes genéticas entre os indivíduos bem como as experiências pessoais distintas levam à variabilidade na manifestação dos traços na população.
A compreensão de que os fatores de personalidade se distribuem em um contínuo permite entender de onde surgem os Transtornos de Personalidade (TP). TP são padrões duradouros e inflexíveis de pensamento e comportamento que se afastam significativamente das normas culturais esperadas para o indivíduo, sendo que tais padrões geram prejuízos ou sofrimento. Em casos de TP, os sinais e sintomas se iniciam na adolescência ou início da fase adulta.
Atualmente, uma das principais hipóteses é a de que os transtornos de personalidade seriam a manifestação extrema de um ou mais dos traços de personalidade. Isso ocorreria porque esses indivíduos possuiriam muitas variantes genéticas que favoreceriam a emergência de tais sintomas, e que, além disso, passaram por experiências que aumentaram a chance do desenvolvimento de TP. Como exposto por Knopik, Neiderhiser, DeFries e Plomin (2017):
“Uma regra geral emergindo da pesquisa genética comportamental é que transtornos comuns são o extremo quantitativo dos mesmos fatores genéticos e ambientais que contribuem para a faixa normal de variação. Em outras palavras, uma psicopatologia pode ser o extremo da variação normal na personalidade.” [Tradução nossa]
Um exemplo dessa proposta é a de que existe uma associação entre baixa amabilidade e a agressividade em indivíduos com transtorno de personalidade antissocial. Para o clínico, uma questão que pode surgir é: “Como esse entendimento influencia minha prática?”.
Em termos de descrição diagnóstica, existem duas formas pelas quais essa noção poderia auxiliar. A primeira leva em conta a proposta do DSM-5-TR de que os transtornos de personalidade são, no total, 10 quadros nosológicos. A concepção de que os TP são manifestações extremas de traços de personalidade presentes em toda a população sustenta a busca de quais são os fatores que estão se manifestando de maneira desadaptativa em cada um dos transtornos.
Contudo, uma outra maneira de motivar mudanças na prática clínica é a partir da proposta levantada na Seção III do próprio Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Essa seção reconhece que uma alternativa à abordagem categórica de transtornos mentais seria a perspectiva dimensional, na qual descreve-se os aspectos específicos (facetas) da personalidade que estão gerando traços mal adaptativos, sem necessariamente enquadrar os prejuízos em um dos 10 transtornos de personalidade.
Estes se tratam dos diagnósticos de transtorno de personalidade especificado pelo traço (TP-ET), e aproximam-se mais do modelo dos Cinco Grandes Fatores e das perspectivas dimensionais das psicopatologias.
Independentemente da escolha da descrição diagnóstica, fechar um quadro de TP pode ser desafiador para profissionais, tendo em vista a quantidade de confundidores que podem surgir em uma avaliação. Dessa maneira, eles devem lançar mão de recursos para mapear queixas e comportamentos desadaptativos.
Para a identificação de prejuízos característicos de transtornos de personalidade, o instrumento E-TRAP (Entrevista Diagnóstica para Transtornos de Personalidade) permite identificar tanto os traços que são característicos das categorias nosológicas, ou seja, dos 10 diagnósticos de TP sugeridos no DSM-5-TR, como também quais traços individualmente estão com perfil desadaptativo, podendo auxiliar na descrição de TP-ET.
Isso é possível porque a aplicação do Critério A + Critério B do E-TRAP fornece informações sobre sintomas característicos de TP, mas também permite verificar o quão desviante está a manifestação de alguns grupos de comportamentos.
Alguns exemplos de traços (facetas) contemplados pelo E-TRAP e que podem ser identificados como extremos são: a labilidade emocional, a ansiedade, a insegurança de separação, o retraimento, a anedonia, a grandiosidade, a busca por atenção, a impulsividade, a exposição a riscos, a excentricidade, dentre outras.
Por meio dos resultados obtidos no E-TRAP, o clínico pode realizar a leitura do caso juntamente com os dados obtidos em anamnese, entrevistas, testes neuropsicológicos, questionários, conversas com familiares, etc, de forma a sustentar ou descartar hipóteses de TP. Em uma área de investigação desafiadora, como a da personalidade, sobre a qual novas evidências são constantemente produzidas, o trabalho profissional é favorecido quando o clínico se atualiza tecnicamente e quando se utiliza de recursos que acompanham as inovações.
Vinícius Figueiredo de Oliveira
Psicólogo, mestre pelo programa de pós-graduação em Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisador do Laboratório de Psicologia Médica e Neuropsicologia (LAPSIMN – UFMG), e professor de psicologia da Faculdade Presbiteriana Gammon.
Referências
John, O. P., Robins, R. W., Pervin, L. A. (Eds.) (2008). Handbook of personality: Theory and research (3ª ed.). Guilford Press.
Goldberg, L. R. (1990). An alternative description of personality: The Big Five factor structure (59, 1216–1229). Journal of Personality and Social Psychology.
Loehlin, J. C., Nichols, J. (1976). Heredity, environment and personality.University of Texas.
Vukasović, T., Bratko, D. (2015). Heritability of personality: A meta-analysis of behavior genetic studies (141(4), 769). Psychological bulletin.
Polderman, T. J. C., Benyamin, B., de Leeuw, C. A., Sullivan, P. F., van Bochoven, A., Visscher, P. M., Posthuma, D. (2015). Meta-analysis of the heritability of human traits based on ffty years of twin studies (47(7), 702– 709). Nature Genetics.
Knopik, V. S., Neiderhiser, J. M., DeFries, J. C., Plomin, R. (2017). Behavioral genetics. Worth Publishers, Macmillan Learning.
Graziano, W. G., Tobin, R. M. (2019). Theoretical conceptualizations of agreeableness and antagonism. In The Handbook of Antagonism (pp. 127-139). Academic Press.
American Psychiatric Association. (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5ª ed., texto rev.). American Psychiatric Association. https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425787
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