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Habilidades Aritméticas e sua Investigação Neuropsicológica

**Descrição resumida da imagem:** Uma menina jovem, com cabelo longo e escuro, escreve em uma lousa verde usando giz branco. Ela está resolvendo operações matemáticas de multiplicação, como "9 x 4 = 36" e "5 x 5 = 25". A expressão dela é de concentração, e a cena remete a um ambiente educacional que reforça o aprendizado de habilidades aritméticas. A imagem destaca a importância do ensino e do desenvolvimento cognitivo relacionados à matemática.

por Vinícius Figueiredo de Oliveira

O domínio de cálculos aritméticos é uma habilidade necessária para a participação social, acadêmica e profissional. Apesar de indivíduos com desenvolvimento típico e escolarização adequada poderem julgar as competências matemáticas básicas como capacidades elementares, elas só se tornam assim após um treino árduo e sustentado.

Um dos indicativos mais preocupantes da complexidade do aprendizado matemático para muitos estudantes brasileiros é o resultado do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) de 2018, que apontou que cerca de ⅔ dos escolares apresentam desempenho aritmético inferior ao necessário para lidar com os desafios psicossociais.

Ressalta-se, contudo, que tais resultados foram obtidos antes da pandemia de COVID-19, a qual afetou significativamente a prontidão e o desempenho escolar de crianças e adolescentes. Isto é; é possível que as conclusões da próxima avaliação do PISA apresentem um cenário ainda menos otimista. Contudo, apenas será possível verificar eventuais alterações significativas no desempenho dos escolares brasileiros após a divulgação dos resultados do PISA 2022, prevista para dezembro de 2023, segundo o calendário da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Independentemente de quais sejam os novos resultados, é certo que as habilidades aritméticas, como qualquer competência acadêmica, dependem do recrutamento de habilidades cognitivas, as quais serão influenciadas pela escolarização, gerando um processo retroalimentativo entre cognição e escolarização. Como consequência, a aprendizagem só pode ocorrer caso as habilidades cognitivas estejam preservadas.

A seguir, serão exploradas quais são as habilidades subjacentes à aquisição da matemática, como os déficits circunscritos nessas habilidades estão associados ao transtorno específico da aprendizagem com prejuízo na matemática, e de que forma profissionais da saúde e educação podem realizar a devida avaliação dos comprometimentos.

 

As Habilidades Subjacentes

 Um dos modelos mais utilizados para compreender as representações mentais associadas com a capacidade matemática é o do Triplo Código, proposto pelo neurocientista Stanislas Dehaene. O modelo passa por 3 capacidades: o senso numérico, a representação numérica visual, e a representação numérica verbal.

O senso numérico se trata de uma capacidade inata de noções de quantidade e de magnitude. Ela permite compreender relações entre quantidades (por exemplo, compreender que 5 é menor do que 10) e compreender estimativas (por exemplo, saber que um conjunto de 20 pontos possui menos itens do que um conjunto de 100 pontos; estimar se a distância até a montanha mais próxima pode ser percorrida a pé; ou mensurar quanto tempo se passou desde o nascer do sol). Em síntese, o senso numérico é um processamento semântico de quantidades.

A representação numérica visual se trata da assimilação de que o símbolo arábico é um signo de uma quantidade (por exemplo, o “5”, representa uma quantidade específica de elementos: I I I I I). A representação numérica verbal, por sua vez, está relacionada à nomeação, isto é, se refere à capacidade de compreender que os números podem ser representados por palavras (por exemplo, a palavra “cinco”, que se refere tanto ao símbolo arábico quanto à sua respectiva quantidade).

Há uma diferença na natureza das 3 habilidades envolvidas no modelo do Triplo Código. Enquanto o senso numérico se trata de uma capacidade intuitiva com a qual nascemos, as representações verbais e numéricas são invenções culturais.

Isto é, a capacidade de compreender magnitudes é compartilhada por todos os indivíduos da espécie humana com desenvolvimento típico, mas o conhecimento de que o numeral arábico “3” representa uma quantidade (I I I) e de que podemos nomear essa quantidade (“três”) só é adquirido por meio de instrução, de tal forma que culturas diferentes podem desenvolver representações distintas (ou nem mesmo desenvolvê-las).

Com esse entendimento, fica evidente que a escolarização inadequada pode resultar em comprometimento na aprendizagem da aritmética, uma vez que o indivíduo estaria impossibilitado de desenvolver esse artefato cultural corretamente. Entretanto, o nosso interesse pode se voltar àqueles indivíduos que apresentam um déficit persistente na aprendizagem da matemática a despeito de boas condições escolares. Neste caso, pode-se levantar a hipótese de discalculia.

           

A Discalculia

Qualquer uma das habilidades que compõem o triplo código pode estar comprometida devido a problemas no neurodesenvolvimento. Os déficits podem ser isolados ou múltiplos, o que quer dizer que é possível que um indivíduo apresente prejuízo apenas em um componente (como apenas na aprendizagem da representação numérica), ou em mais de um deles. Essas dificuldades levam a comprometimento no processamento numérico e no cálculo básico, o que caracteriza o transtorno específico da aprendizagem com prejuízo na matemática, conhecido como discalculia.

Pacientes com essa condição apresentam dificuldades persistentes na aprendizagem de conceitos matemáticos e de fatos aritméticos (como a tabuada). Também podem manifestar prejuízos na execução dos procedimentos aritméticos, como contagem, reconhecimento de números a partir do símbolo arábico, comparações entre diferentes magnitudes, e realização de procedimentos de cálculos.

Para que o diagnóstico seja realizado corretamente, é necessário descartar outras possíveis causas para as dificuldades apresentadas, como doenças ou lesões cerebrais, deficiência intelectual, escolarização inadequada, privação socioeconômica, etc.

Com o objetivo de eliminar outras hipóteses e descrever perfil de capacidades comprometidas e preservadas do paciente, os profissionais devem realizar avaliações diagnósticas minuciosas, recorrendo a entrevistas com o paciente e pessoas próximas, conversa com a escola, e aplicação de questionários e testes neuropsicológicos.

Neste ponto, é necessário detalhar a importância dos testes neuropsicológicos como ferramentas na investigação.

 

Os Testes Neuropsicológicos

 Como dito anteriormente, uma das etapas para que o diagnóstico de discalculia seja realizado é a constatação de que as dificuldades na aprendizagem na matemática emergem de déficits cognitivos associados às habilidades do código triplo. Isto quer dizer que os prejuízos escolares ao lidar com os números não podem ser explicados por comprometimento em outras capacidades, por exemplo, atenção, memória, linguagem e inteligência.

Para chegar a essa conclusão, testes neuropsicológicos que avaliam cada uma das capacidades citadas são de grande auxílio, visto que podem revelar como interpretar o padrão de funcionamento cognitivo do paciente em relação à média da população.

Contudo, ressalta-se que os resultados de todos os testes devem ser lidos por meio do raciocínio clínico, que se baseia na observação do comportamento do indivíduo, em entrevistas realizadas, na análise qualitativa dos testes e no conhecimento técnico do profissional.

Uma vez que os dados coletados sejam analisados em conjunto, será possível concluir que se trata de um quadro de discalculia quando há uma discrepância entre o QI do indivíduo e suas habilidades matemáticas, desde que a discrepância não seja explicada por outros fatores.

Um teste neuropsicológico que pode fornecer uma compreensão das capacidades aritméticas do indivíduo é o PRONUMERO. Este instrumento contempla escolares do 2º ao 5º ano e permite avaliar as habilidades por meio de 3 subtestes.

O primeiro é o subteste de Transcodificação Numérica, que permite verificar se o indivíduo assimilou como se representa por escrito a forma arábica do número ditado de forma verbal. O outro subteste abarca o cálculo aritmético básico, permitindo verificar a aprendizagem do indivíduo dos conceitos de adição, subtração e multiplicação.

O terceiro subteste, por sua vez, envolve o uso mais complexo da aprendizagem matemática para resolver problemas aritméticos narrativos. A partir do desempenho do avaliando em cada um desses subtestes, é possível verificar potenciais déficits na aprendizagem matemática, bem como descrever as especificidades das dificuldades.

Em suma, o diagnóstico neuropsicológico da discalculia ou das dificuldades aritméticas permite avaliar o perfil de habilidades cognitivas comprometidas e preservadas, bem como verificar a manifestação ecológica das dificuldades. A partir dessas conclusões, o profissional é capaz de sugerir melhores condutas e intervenções que favoreçam o paciente, contribuindo para melhora em sua adaptabilidade escolar e em sua qualidade de vida.

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Vinícius Figueiredo de Oliveira

Psicólogo, mestre pelo programa de pós-graduação em Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisador do Laboratório de Psicologia Médica e Neuropsicologia (LAPSIMN – UFMG), e professor de psicologia da Faculdade Presbiteriana Gammon.

Referências

Organization for Economic Cooperation and Development (OCDE) (2019). Programme for International student assessment (PISA). Results from PISA 2018. (https://www.oecd.org/pisa/publications/pisa2018_cn_BRA.PDF)

Fonseca, R. P., Guinle, V. A., Fiorioli, V., Dalfovo, N. P., Uebel, M. G. P., & Enéas, L. V. (2022). Impactos desenvolvimentais de saúde mental e aprendizagem em crianças, adolescentes, pais e professores pós-fechamento das escolas: uma revisão sistemática. Debates em Psiquiatria, 12, 1-87.

https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/acoes-internacionais/pisa-2022-avaliou-mais-de-80-dos-participantes-da-amostra

Peng, P., & Kievit, R. A. (2020). The development of academic achievement and cognitive abilities: A bidirectional perspective. Child Development Perspectives, 14(1), 15-20.

Dehaene, S., & Cohen, L. (1995). Towards an anatomical and functional model of number processing. Mathematical cognition, 1(1), 83-120.

American Psychiatric Association. (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Artmed Editora.

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