por Katie Almondes
Dormir é perda de tempo? Impacto das alterações do sono nas funções executivas.
Hodiernamente, a privação de sono tem sido relatada com frequência pelos indivíduos, sendo um sintoma reflexo de nossa sociedade.
A oferta ininterrupta de bens de consumo e serviços durante as 24 horas do dia mantida por equipes e trabalhadores individuais submetidos a esquemas de turnos nas mais variadas áreas e funções de atuação, desde equipes de saúde a motoristas de caminhão, de plataformas de petróleo a empresas de telecomunicações, contemplando as demandas e metas profissionais, sociais, relacionais e de consumo da sociedade 24 horas, é uma das grandes razões associadas à redução do sono, resultando em efeitos negativos dos mais variados graus na saúde dos indivíduos.
Não é diferente para os indivíduos que apresentam atividades distribuídas em três turnos e precisam equilibrar as horas e as demandas do trabalho, além das demandas domésticas. Tudo isso incrementado pela disponibilidade de luz artificial e pelo uso excessivo de dispositivos eletrônicos, acrescentando mais horas à vigília e mais privação de sono. A ideia cultural de que dormir é perda de tempo e serve apenas aos fracos norteia esse seguimento.
Dados de pesquisa epidemiológica sobre duração encurtada de sono e qualidade ruim do sono variam consideravelmente entre países: na Noruega, 7.1% da população relata sono não reparador e horas de sono reduzidas (Uhlig et al, 2014), enquanto no Canadá, essa porcentagem é 13.4% (Morin, Leblanc & Bélanger, 2011). Até 28% da população nos Estados Unidos identifica horas de sono insuficientes e sono não reparador (Ford et al, 2014), enquanto na Espanha a porcentagem desses relatos chega a 38.2% da população (Madrid-Valero et al, 2017).
No Brasil, ao menos 40% da população identifica dormir horas de sono insuficientes, 27% percebem sono não-reparador ou superficial, e 12% percebem sonolência diurna (Hirotsu et al., 2014).
Débito de sono
Ainda de acordo com Hirotsu et al., (2014), num estudo realizado com amostras representativas de todas as regiões geográficas do país, 76% da população brasileira relata pelo menos uma demanda relacionada ao sono, o que reforça os dados internacionais de que a população mundial sofre com o débito de sono.
Esse circuito de débito de sono e vigília prolongada, dia após dia, afeta não apenas a quantidade de sono, mas também a qualidade do sono, repercutindo negativamente no funcionamento diurno, afetando a saúde física, social, mental. E essa realidade não pertence exclusivamente a uma classe social, uma raça, uma região, um país e nem a uma fase do desenvolvimento.
Há estudos realizados em crianças, adolescentes, adultos e idosos exibindo dados alarmantes não apenas de privação de sono, mas também de transtornos do sono. Um desses impactos negativos recai sobre o desempenho cognitivo, em especial, nas funções executivas. As funções executivas são processos cognitivos que envolvem várias habilidades com intuito de planejar, organizar e executar ações.
Estão na base de todas as atividades construtivas das pessoas, de seu desenvolvimento cognitivo, psicológico e social. Essas funções são conhecidas como um sistema de alta complexidade, que estão no controle e regulação de funções cognitivas de baixa complexidade, que organiza todas as ações necessárias para atingir um objetivo, desde sua elaboração, impedindo que o indivíduo se mantenha no foco e não aja por impulso, até a consecução.
Essas habilidades permitem ao indivíduo avaliar a eficiência de seu comportamento e adequá-lo de acordo com as situações, abandonar estratégias ineficazes em prol de outras mais eficientes e adaptativas e, assim, conseguir resolver os problemas cotidianos, sejam eles imediatos, a médio ou a longo prazo, e de diversas complexidades.
Impactos da privação do sono
Dados de literatura têm demonstrado que as regiões do córtex pré-frontal (CPF), analisadas por estudos utilizando eletroencefalografia e neuroimagem, são mais responsivas e sensíveis à privação de sono do que outras áreas do cérebro (Killgore et al., 2008; Thomas et al., 2000; Killgore, Balkin, & Wesensten, 2006), desencadeando mudanças na cognição, emoção e comportamento consistente com a disfunção executiva.
Nessa direção, evidências científicas utilizando exames de imagem exibem que o córtex pré-frontal é uma das regiões cerebrais cuja restauração e recuperação é uma prioridade máxima após um período ininterrupto de vigília (Muzur, Pace-Schott & Hobson, 2002; Gosselin, Koninck & Campbell, 2005; Ferreira et al. 2006; Boonstra, Stins, Daffertshofer & Beek, 2007).
Assim, impactos da privação de sono são encontrados em controle inibitório, memória operacional, flexibilidade cognitiva, tomada de decisão e atenção (Stenuit & Kerkhofs, 2008; Von Dongen et al, 2003; Castro e Almondes (2018); Drummond et al., 2004; Habeck et al., 2004).
Para exemplificar, Schmidt, Gay, Ghisletta & Van der Linden (2010) apontam que horas de sono reduzidas estariam associadas à impulsividade, preocupações e pensamentos intrusivos, enquanto Rossa, Smith, Todosan & Sullivan (2014) sugerem um aumento de decisões de risco em jovens em estado de privações de sono.
De acordo com os autores, essas decisões de risco estariam associadas a prejuízos na compreensão das consequências negativas, fornecendo indícios de que a redução do sono impacta no controle cognitivo, especialmente em indivíduos mais novos.
Dormir é perda de tempo? O que os dados têm demonstrado é que ficar sem dormir e sem respeitar a quantidade e qualidade de sono é uma negligência para nossa saúde biopsicossocial. Assim, importante para os psicólogos avaliarem o sono de seus pacientes e considerarem em suas intervenções possibilidades que incorporem qualidade de sono, considerando, inclusive, o impacto da alteração de sono no humor.
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