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Qual é a função da memória?

Por Vinícius Figueiredo de Oliveira

Qual é a função da memória? (não é lembrar do passado!)

Se a função da memória é lembrar do que aconteceu no curto ou longo prazo, por que, muitas vezes, esquecemos de situações que vivemos, “deletamos” o nome de um colega de trabalho e temos nossa memória modificada por sugestões de outras pessoas? A resposta, aparentemente, é porque a função da memória não é lembrar do passado. Ao menos, poderíamos dizer que a função última da memória não é lembrar do que aconteceu.

Toda essa discussão só faz sentido se estivermos falando em função do ponto de vista evolutivo. Ou seja, a pergunta que deveríamos fazer para investigar a finalidade da memória é: de que forma a memória nos torna mais adaptados ao meio, favorecendo nossas chances de sobreviver e/ou reproduzir?

Por essa perspectiva, recuperar o passado exato tem pouco valor, já que ele nunca mais ocorrerá da mesma maneira. A função da memória seria, mais precisamente, usar o passado a serviço do presente ou para predizer o futuro (Nairne & Pandeirada, 2008). Apesar de parecer uma mudança sutil, ela faz toda a diferença.

Se a memória fosse apenas um depósito de informações com as quais entramos em contato, ela não teria uma característica essencial que a compõe e permite seu bom funcionamento: o dinamismo da memória.

 

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É comum que lembranças enfraqueçam, fiquem mais fortes, ganhem uma nova emoção, sejam ressignificadas, modifiquem-se a partir de novos dados etc., e todas essas mudanças podem nos auxiliar a lidar de maneira mais adaptada com o meio no qual estamos. Perceba: a memória é construída, não reprodutiva.

Suponha, por exemplo, que você acaba de conhecer uma pessoa que mora em um local próximo à sua residência. Suas recordações sobre a pessoa são basicamente limitadas a essas informações, à sua aparência e ao seu nome. Contudo, vocês se aproximam, e, agora, você conhece mais sobre ela (idade, trabalho, hobbies) e descobre que recentemente ela se mudou para outro bairro. Neste momento, seu cérebro tem o trabalho de, simultaneamente, acomodar novas informações em uma memória prévia (sobre quem é aquela pessoa) e enfraquecer aquela lembrança de que o local onde ela mora é próximo a você. Para uma evocação de fatos efetiva, não basta apenas atualizar a memória; é necessário tornar enfraquecida aquela lembrança do primeiro local de moradia para que essa lembrança não entre em competição com o endereço atual no momento em que você se questionar “Onde o fulano mora?”.

Note neste exemplo como o esquecimento tem um papel fundamental para o bom funcionamento da memória, na medida em que favorece o acesso eficiente a uma informação ao eliminar as que são irrelevantes – é como apagar aqueles arquivos que estão sobressalentes no seu celular (Carey, 2015). Para ilustrar este ponto, vamos aos casos extremos na literatura científica, a partir dos quais entenderemos que lembrar de tudo pode não ser tão bom quanto pode parecer.

Jill Price, uma cidadã americana, foi a primeira pessoa a ser diagnosticada com hipertimesia, uma condição que a impede de esquecer o passado. Ela procurou especialistas da Universidade da Califórnia porque se sentia exausta devido ao fardo de suas lembranças.

Após testes, foi constatado que Jill tinha a capacidade de recordar detalhes de todos os dias de sua vida desde os 14 anos, incluindo onde estava, o que estava fazendo, o que estava vestindo e os principais eventos do dia – uma memória autobiográfica fora do comum.

Embora lembrar quase toda a sua vida possa parecer uma habilidade incrível, Jill também enfrentava desafios. Em 2003, ela se casou, mas seu marido faleceu pouco tempo depois de um acidente vascular cerebral. Três anos depois, em uma entrevista, Jill revelou que ainda se sentia devastada como se o evento tivesse acontecido recentemente. Ela chorava várias vezes ao dia, sentindo a dor da perda de seu marido.

Outro caso extraordinário é o do jornalista e mnemonista russo Solomon Shereshevsky, estudado pelo renomado neuropsicólogo Alexander Luria (Luria, 1987). Solomon também tinha a capacidade de lembrar eventos passados de sua vida, assim como Jill Price, mas também conseguia recordar listas de palavras, poemas em diferentes idiomas, fórmulas complexas de matemática, mesmo anos após o primeiro contato.

No entanto, suas memórias eram tão detalhadas e rígidas que ele tinha dificuldade em flexibilizar as informações, pois só conseguia percebê-las da mesma forma como as recebeu inicialmente. Isso também o impedia de compreender metáforas, poesia e abstrações, como ele mesmo afirmou: “Só consigo entender o que posso visualizar. Para compreender o significado de algo, preciso vê-lo”.

Além disso, Solomon também enfrentava dificuldades em reconhecer rostos, pois registrava detalhadamente o rosto de uma pessoa no primeiro encontro, tornando difícil reconhecê-la em caso de mudanças no cabelo, maquiagem, barba ou envelhecimento natural. Em suas palavras: “Rostos são muito mutáveis”. Esses foram apenas alguns dos problemas enfrentados por Solomon até sua morte em 1958.

Estes casos, apesar de incomuns, são enormemente emblemáticos, e reforçam o ponto levantado por James Nairne e Josefa Pandeirada (2008): a função da memória não é acumular uma quantidade de informações e percepções que só serão evocadas no momento oportuno. Na verdade, a memória é utilizada a favor do presente e do futuro, sendo que, para atingir este objetivo, parte de sua característica é a dinamicidade.

Por vezes, essa característica traz resultados negativos (como em casos de memórias falsas), contudo, é justamente tal particularidade que permite que tenhamos uma melhor adaptabilidade no nosso meio.

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Autor

Vinícius Figueiredo de Oliveira é psicólogo, mestrando pelo programa de pós-graduação em Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, e pesquisador pelo Laboratório de Psicologia Médica e Neuropsicologia (LAPSIMN – UFMG).

Referências

Carey, B. (2015). Como aprendemos: a surpreendente verdade sobre quando, como e por que o aprendizado acontece. Tradução de Christiane Simyss.

Luria, A. R. (1987). The Mind of a Mnemonist: A Little Book about a Vast Memory, With a New Foreword by Jerome S. Bruner. Harvard University Press.

Nairne, J. S., Pandeirada, J. N. (2008). Adaptive memory: Remembering with a stone-age brain (17(4), pp. 239-243). Current Directions in Psychological Science.

https://www.seattlepi.com/lifestyle/article/Wow-a-perfect-memory-But-for-Jill-Price-it-is-1273622.php

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