por Maria Cecília Vilhena Moraes
O processo de crescimento apresenta vários desafios para a criança, que os enfrentará usando os recursos psicológicos de que dispõe. A constituição de recursos psicológicos para dar conta dos desafios da infância em suas diferentes etapas é multideterminada, e sua base se conforma a partir dos primeiros meses de vida da criança.
Na visão de Erik Erikson (1976), por exemplo, durante o primeiro ano de vida estabelece-se o que ele denomina “confiança básica”, requisito fundamental para a criança confiar no ambiente e, posteriormente, se abrir para as relações interpessoais. Pequenas frustrações também são importantes, destaca o autor, para que a criança desenvolva a esperança de obter o que precisa, apesar das dificuldades momentâneas. Ou, em outras palavras, para que desenvolva a resistência a frustrações.
De modo geral uma criança saudável, física e emocionalmente, é ativa, interessada, aberta para as experiências da vida. Entretanto, quando apresenta problemas emocionais ou de comportamento, ou alterações significativas nas suas atitudes e comportamentos habituais, nem sempre os pais ou responsáveis têm condições de identificar os motivos. Por vezes, sequer percebem a possível presença de algum problema.
Além das questões próprias da infância, conflitos familiares e situações de negligência, abandono e violência física ou sexual provocam, na criança, intenso sofrimento psíquico, cuja intensidade ou a própria existência não raro ela é incapaz de expressar. Além das limitações inerentes ao estágio de desenvolvimento ou aos recursos psicológicos da criança, condições externas podem dificultar que situações de violência ou abuso, por exemplo, sejam identificadas. (Schaefer, Rossetto & Kristensen, 2012).
Nessas situações, a avaliação formal da personalidade por um psicólogo é uma estratégia bastante útil. Isso envolve uma variedade de perspectivas e abordagens técnicas que ajudam a identificar e caracterizar as condições sócio-emocionais da criança, assim como suas atitudes, comportamentos e reações a situações e ambientes específicos e recentes ou gerais e de longo prazo (Knoff, 1986).
Entrevistas com as crianças e os responsáveis, integradas à aplicação de técnicas de investigação psicológica são procedimentos bastante utilizados para identificar sinais e sintomas cognitivos, emocionais e comportamentais compatíveis com a ocorrência de abuso sexual (Fortes, Scheffer & Kapczinsky, 2007). A identificação de sofrimento psicológico provocado por outras circunstâncias, como maus tratos, negligência, privação emocional, ou ainda por dificuldades inerentes ao próprio crescimento psicológico, também pode ser atingida por meio desses procedimentos.
Nesse contexto, as técnicas projetivas são particularmente úteis. Essas técnicas são procedimentos de investigação da personalidade que se fundamentam na “hipótese projetiva”. De acordo com essa hipótese, quando se apresenta a uma pessoa uma tarefa a ser realizada com certo grau de liberdade, ela dará a informação destinada a satisfazer o que lhe é pedido.
Entretanto, ao tentar dar conta da tarefa, a pessoa fornece informações a partir das quais podem ser feitas inferências relativas ao seu modo singular de perceber o mundo, ver-se nele e lidar com os desafios que se apresentam.
Assim, as técnicas projetivas são instrumentos que favorecem a manifestação do mundo interno do examinando ao submetê-lo a uma situação pouco estruturada, ou seja, ao oferecer-lhe material que dá margem a diferentes interpretações, acompanhado de instruções que lhe dão liberdade quanto ao uso do material apresentado na elaboração das respostas. (Silva, 1989).
As técnicas projetivas não são exatamente “testes psicológicos”, no sentido estrito da expressão, e sim “experimentos”, como já declarava Hermann Rorschach ao descrever seu método das manchas de tinta. (Silva, 2011).
As técnicas projetivas temáticas usam estímulos figurativos a partir dos quais o examinando deve desenvolver um tema, ou seja, narrar uma história. Entre elas, destaca-se a técnica de apercepção temática infantil com figuras animais – CAT-A (do inglês Children’s Apperception Test) criada por Leopold Bellak e Sonya Bellak. Essa técnica oferece, à criança, um meio de mostrar, entre outros aspectos, como ela vê o mundo que a cerca, como se vê nesse mundo, os conflitos que vivencia e os recursos psicológicos de que dispõe para enfrentá-los.
Os estímulos utilizados para eliciar as narrativas foram elaborados de modo a investigar as diferenças individuais no enfrentamento dos desafios comuns da infância, considerados de uma perspectiva psicanalítica (Miguel, Tosi, Silva & Tardivo, 2010).
O material usado são 10 cartões com desenhos que retratam figuras de animais em situações tipicamente humanas: refeição em família, brincadeira, passeio, solidão, situações potencialmente ameaçadoras, entre outras. De modo geral as imagens são suficientemente estruturadas para trazer, uma situação familiar para a criança.
A análise das histórias é uma tarefa complexa que exige a consideração de vários aspectos simultaneamente. Deve-se levar em conta o conteúdo do relato, a forma como a história é narrada, o conjunto de histórias criadas pela criança e informações de outras fontes (histórico da criança, dados de observação etc.).
A partir desse conjunto de dados, pretende-se chegar a uma apreciação das condições de funcionamento geral da personalidade da criança, seus sentimentos, tendências, complexos e conflitos.
O CAT-A é um instrumento de grande valor para psicólogos clínicos que trabalham com o universo infantil, particularmente quando se trata de crianças em situação de risco físico ou psicológico.
Além de revelar as condições gerais de funcionamento da personalidade da criança, essa técnica pode pôr em evidência as tendências que a criança se recusa a reconhecer ou é incapaz de admitir, compreender ou expressar, seja por serem inconscientes ou inaceitáveis, seja por excederem o que seus recursos cognitivos ou de desenvolvimento possibilitam apreender, ou ainda em decorrência de condições externas que impeçam o reconhecimento de sua existência.
Além de dar voz às dificuldades experienciadas pela criança, o CAT-A permite identificar também os recursos psicológicos de que ela dispõe para enfrentar as dificuldades que vivencia, oferecendo, assim, valiosos subsídios para a escolha da intervenção mais indicada para cada caso em sua singularidade.
Referências Bibliográficas
- Erikson, E. H. (1976) Infância e sociedade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1987.
Fortes, M. G. C., Fortes, Scheffer, M. S., & Kapczinsky, N. S. (2007). Elementos indicativos de abuso sexual na infância obtidos pelo método Rorschach. Revista HCPA, 27(3), 5-12; - Knoff, Howard M. (1986) The assessment of child and adolescent personality. New York: Guilford Press, 2003;
- Miguel, A.; Tardivo, L. S. L. P. C.; Silva, M. C. V. M.; Tosi, S. M. V. D. (2010) CAT-A: Teste de apercepção infantil: figuras de animais de Bellak e Bellak – Adaptação à população brasileira – São Paulo: Vetor. –(Coleção CAT-A; v.1)
- Schaefer, Luiziana Souto, Rossetto, Silvana, & Kristensen, Christian Haag. (2012). Perícia psicológica no abuso sexual.